quarta-feira, 14 de julho de 2010

Amo até a barata

Ontem, um amigo descobriu esse blog. Me questionou acerca da paixão por uma pessoa específica. Usou um nome, ó pecado dos que nada sabem!
Falei-lhe brevemente, ao telefone, coisas bobas sobre licença poética e liberdade. Mas a verdade é que sou sim, apaixonada. Pelo mencionado e pelo que o mencionou, pelos que leio e pelos que me lêem, pelos que abandonei e pelos que me abandonaram. Pelos esquecidos e pelos que nunca cheguei a tocar o rosto com as mãos. Pelos que tiraram minha roupa e me fizeram verter sangues e lágrimas e pelos que apenas discuti sobre meu livro favorito. Por esses dias, tenho inclusive, muito desejado morrer de tanto desejo por alguém que me devora com olhares e poucas palavras. De longe.
Por todos eles, sou sim, apaixonada, dentro da minha medida, que nunca é pouca ou vã. E tão loucamente o sou, que por eles danço tango e pinto a boca e os olhos e me embriago e escrevo.
Enquanto isso, peço ao divino esperançosa e humildemente, que um dia surja aquele que me faça acordar de manhã, prender o cabelo com fita e varrer a nossa casa enquanto cantarolo bobagens. Porque desde que ele esteja perto de mim, todos os outros também estarão.
E finalmente, eu estarei inteira e apaziguada nesse amor absoluto.

Para o Zé
Adélia Prado
Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra. Divago, quando o que quero é só dizer te amo. Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejandoas finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto: “Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível. Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos. Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho. Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal. Tudo que não é mulher está em ti, maravilha. Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.
O texto acima foi extraído do livro “Poesia Reunida”, Editora Siciliano – São Paulo, 1991, pág.99.

Um comentário:

Luciana Nepomuceno disse...

Ai, o bom da amizade é a gente se encontrar no outro às vezes, você não acha? No dia 23/06, foi isso que escrevi, ali na propaganda do face: Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, (...) as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba. (Adélia Prado). Hoje, já recomposta (ou quase), digo assim: ‎"Não quero faca, nem queijo. Quero a fome"
Te amo.

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